terça-feira, 12 de maio de 2009

Desmistificando a história de Santa Cruz (com literatura!)

*Aproveitando o embalo, no encontro anterior ao de Lya Luft, do Sobre Livros e Leituras, o "tema" foi a obra recentemente relançada, A Valsa da Medusa, da Valesca de Assis - de que fala, aliás, uma postagem aqui no blog. Na mesma época (2002) que redigi um pequeno comentário sobre o livro da Lya, A Asa..., fiz um sobre A Valsa..., ambos sob um olhar de quem quer retirar especialmente aspectos da história local e as relações étnico-raciais. Então, posto abaixo, "para quem interessar possa"...


A literatura muitas vezes pode ampliar a nossa visão sobre o mundo e, mesmo, sobre a história de Santa Cruz do Sul. É o caso, entre outras, da obra A valsa da Medusa (Editora Movimento, 1989), de Valesca de Assis, outra escritora, que, junto com Lya Luft, montam, a partir de suas vivências e conhecimentos, narrativas de excelente densidade social e psicológica. Valesca, através da ficção, baseada em situações reais ou factíveis, e também vários personagens verídicos, amplia o nosso olhar, penetrando na diversidade de indivíduos, grupos e acontecimentos que foram moldando a comunidade santa-cruzense. Saímos de estereótipos, unilateralismos, da epopéia para a crueza própria do ser humano.

Um pequeno trecho do romance, que transcorre em meados do século 19 – ainda, portanto, no início da introdução de imigrantes germânicos (entre outros) na região –, nos coloca frente a inter-relações étnicas ainda pouquíssimo estudadas aqui no Vale do Rio Pardo, especialmente em Santa Cruz do Sul, ou seja, os índios (e/ou descendentes indígenas) e os imigrantes germânicos, além do conflito de identidades regionais trazidas de uma Alemanha ainda em formação.

Pois bem, o colono de sobrenome Schneider comenta com o professor Waldvogel em meio aos calores de uma queimada para a abertura de terreno à lavoura: “Parece mentira que esses índios tenham alguma coisa a nos ensinar. É como se nós, renanos, tivéssemos algo a aprender com a gente atrasada da Pomerânia; como se o sacristão pudesse dizer missa ao vigário! – Peter Schneider cuspiu para o lado e olhou de viés para Inácio Correia (o personagem indígena), seu empregado. – tenho de me cuidar – segredou – logo essa bugrada ladina estará entendendo alemão.” A narradora complementa, no parágrafo a seguir, que “Todo aquele discurso nasceu da curiosidade de Tristan Waldvogel em saber detalhes sobre esse modo peculiar de dobrar a natureza: a coivara, coisa de índio. Nada obteve, senão a indignação de Schneider diante da superioridade dos nativos, ao menos no domínio de uma técnica.”

O preconceito é explicitado muitas vezes ao longo do livro. Outro colono teuto, “Herr” Eick, diz ao já citado Waldvogel: “Sabe, professor, eu não consigo aceitar os brasileiros como gente igual a nós. São burros, desdentados, feios; sinto repulsa em vê-los, em ter de apertar sua mão. Não sei como D. Pedro pode governar gente tão irrisória: é como reinar sobre um bando de macacos; não há a menor ressonância, o menor respeito.”

Nem só o elemento indígena nos é apresentado em A valsa da Medusa. Além da real e importante figura do imigrante norte-americano Guilherme Lewis, proprietário de escravos negros que trabalhavam em uma olaria nas imediações do então Faxinal do João Faria, hoje cidade de Santa Cruz do Sul, Valesca introduz em seu escrito a presença de brasileiros de outras províncias do país – que, de fato, estava ocorrendo conjuntamente à instalação das levas emigradas da Europa. Ela escreve assim: “Ruidosa como sempre, foi à chegada (em uma reunião com o diretor da Colônia de Santa Cruz, João Buff) dos baianos, liderados por José Gonçalves, na verdade o único baiano do grupo formado por ele, um paulista e dois paraenses. Os quatro haviam lutado contra Rosas (ditador argentino, morto em 1877), encantaram-se com o sul e decidiram ficar por aqui, onde casaram – a contra-gosto de algumas famílias – com moças alemãs.” Estamos diante da miscigenação e, de novo, de relações não-pacíficas entre grupos e identidades étnicas.

E é assim, através de contrapontos explicitados em trabalhos como A valsa da Medusa, que vamos formulando uma história de Santa Cruz do Sul e região menos mistificada, mais humanizada e etnicamente inclusiva.

Iuri J. Azeredo

2 comentários:

Nando disse...

Muito bom, no momento em que a produção cientifica e acadêmica tem pouca mobilidade para atingir certo tipo de público com esse assunto "Mobilidade social e preconceito", talvez pela linguagem, acho que um romance é um bom caminho para atingir o público que quer entender Santa Cruz do Sul (mesmo aqueles que irão se decepcionar - por pré-conceitos) com o livro.

Anônimo disse...

Muito legais teus relatos, Iuri. Acho que são contributivos para sala de aula, seja em disciplinas de História, Sociologia, Filosofia ou Psicologia. Fiquei pensando... Acho que vou inventar uma coisa com minhas alunas (e um aluno) no colégio...